segunda-feira, 24 de setembro de 2007

CONTOS TONTOS


Estimação

Ela não sabia pra qual animalzinho queria dar seu carinho. Tinha o mesmo apego aos bichos que os pais, defensores incansáveis dos direitos dos animais, mas ainda não elegera aquele que a contagiaria nas manhãs, aquele com a qual ela dedicaria horas de seu tempo livre para brincadeiras desnorteantes e felicidade compartilhada gota por gota de suor. Já tentou cachorro, gato, papagaio, hamster, marreco, sapo e até uma lagartixa, e nada. Era bom, era legal, mas não era algo mais. Não era, por assim dizer, afeto de quem se espelha.

Os pais diziam “Não se preocupe, é melhor amar os animais em geral que amar a um só e ignorar os outros, e você tem tanto amor dentro desse seu coraçãozinho que pode distribuir pra todos os bichos do mundo”. Aos cinco anos, isso é reconfortante por cinco minutos. Pelas ocupações da causa ambiental dos pais, a menina muitas vezes ficava sozinha em casa, ela e uma boneca, ela e um pente, ela e a sua sombra.

Um amigo era necessário, um que fosse como nenhum outro que ela nunca tivera. Até que um dia ela estava sentada num canto da sala, pintando qualquer coisa com seu lápis de qualquer cor, e uma barata pousou em seu desenho. A menina olhou. A barata parou. A menina a cutucou levemente com o lápis e a barata deu uma coçada em suas antenas e alguns passos pra trás. Então, a menina começou a fazer um traço em frente à barata, que seguia obediente cada reta, cada curva, cada mudança de direção.

Em cinco anos, nunca riu tanto. Fez então um traço descontínuo pra ver o que acontecia. E o inseto resolveu ir embora, na procura incessante de um ralo para se esconder. A menina observou muito atentamente o gesto desesperado do inseto e foi atrás, criando com a mão uma barreira para a passagem da barata, que parou, subiu em sua mão e ali ficou. A menina trouxe o bichinho para perto do seu rosto, observado cada movimento de suas patinhas e antenas. Esboçou um “oi”, e acreditou ter sido respondida, pois a barata moveu suas antenas de uma forma diferente. Perguntou se ela queria ser sua amiga, e ela começou a andar pelo seu braço, chegando próximo ao cotovelo, já de ponta-cabeça conforme se aproximava dos ombros, e depois voltou.

Um contentamento tomou conta da garotinha solitária. Havia finalmente encontrado um animalzinho que fazia jus aos seus cuidados e devoção. Tinha certeza que aquele bichinho estranho seria a melhor companhia para as manhãs silenciosas, tardes longas e noites misteriosas. Tudo a partir dali ganharia novas cores, sons, sentidos. Teria e daria atenção. Teria amor sincero. Teria vida.

Ela deixou a baratinha num canto da sala junto com o papel de seus rabiscos e foi correndo para seu quarto encontrar algo com a qual poderia fazer uma casinha. Revirou caixas, fundos de armários e espalhou revistinhas por todo o quarto. Encontrou uma velha caixinha onde guardava os sapatinhos de suas bonecas preferidas. Jogou-as todas numa gaveta qualquer e correu toda animada para a sala reencontrar aquela que dali por diante seria sua amiga mais confidente e verdadeira.

No caminho, ouviu um grito apavorante, Reconheceu a voz de sua mãe, mas nunca tinha ouvido um grito assim antes, tanto que ficou amedrontada e diminuiu os passos de sua corrida. A seguir, ouviu alguns barulhos como se fossem palmadas. Nunca tinha levado uma palmada, mas sabia o som, pois quando fazia alguma desordem seu pai dava uma palmada com o chinelo na quina do sofá em tom de ameaça, e ela entendia o que isso significava e não repetia o erro. De repente, os sons cessaram, e ela apressou-se novamente. Entrou na sala, mas não viu a nova amiguinha lá. Nisso seu pai passou por ela com uma pá de lixo na mão, e a menina seguiu. E foi então que, no fim do percurso, ela viu a barata parada no chão, imóvel, de ponta-cabeça com as antenas quebradas. E seu pai a recolhendo com a pá de lixo e saindo de casa para jogar na lixeira da calçada.

E então, ela chorou. Um choro sentido, como nunca antes havia chorado. Não entendia porque seus pais haviam matado o animalzinho que havia escolhido para amar. Não entendia como um amor a uma determinada “coisa” podia ter exceções. Não entendia que o que havia despertado nela de repente não podia mais ser demonstrado a quem a transformou dessa maneira.

Ela não tinha ainda pura consciência disso, mas naquele dia em que se dispôs a compartilhar tudo que tinha de melhor dentro dela com a baratinha que pousou em seu desenho, a garotinha teve suas primeiras grande lições sobre a vida: Que a humanidade é cheia de entrelinhas, exceções, contudos e entretantos. Que o amor é transformador, pois nos faz entrar em contato com partes de nós que, até então, pareciam adormecidas, mas que esse sentimento maravilhoso muitas vezes é incompreendido, ou subestimado, e é infinito enquanto dura. E que definições de igualdade existem para que uns sejam mais iguais que os outros.

quinta-feira, 20 de setembro de 2007

LETRAS ILETRADAS


Íris

O mundo parece tão frio
E deserto

Nem as melhores metas estão livres de seus pecados
E de suas precauções

E uma pessoa nova surge a cada minuto
Com a receita da perfeição
Com a essência idolatrada

Cada passo dissimula uma incerteza
Que ninguém consegue assumir
Todos se calam
E se calando, não percebem
Que gritam por dentro com a mesma voz
Uma única e bela palavra

Mas não, o sacrifício é sábio
Os corações estão camuflados
E não conseguem mais olhar para os lados

Os desejos silenciam
Não descobriram nenhuma dignidade livre
Os sentidos se isolam
E cada um se torna sua própria prisão

terça-feira, 18 de setembro de 2007

Perfeição é coisa de boneca de porcelana.


Sou preguiçoso, desatento, bagunceiro, chato, me perco em estacionamentos, jogo bola que nem um velho de 88 anos, tenho 3 obturações, sou infantil, imaturo, desengonçado, hipocondríaco, sempre sonolento, não como na mesa, sou bicho do mato, odeio telefones, amo filmes esquisitos, me visto como quem se joga no armário e seja o que Deus quiser, adepto da solidão e das guloseimas sem hora, viciado em “internerd”, ronco, em termos culinários não sei nem esquentar água direito, quando desmotivado minha atitude se equivale a de uma bauxita, muitas vezes sem iniciativa por... ahn... timidez, tenho o gosto musical de alguém 30 anos mais velho, meus amigos reclamam que eu sumo toda hora, minha mãe reclama que eu não arrumo o quarto, minha irmã reclama que eu não dou atenção quando ela liga, e minha experiência e conhecimentos no campo dos relacionamentos amorosos são quase tão evoluídos quanto os de um bebê de 7 meses, sou manipulador, já ralei o carro tantas vezes que minha mãe tá com vergonha de ir numa revendedora ver quanto ele vale (isso mesmo, o carro não é meu), reclamo de ter que lavar 1 mísero copo, sempre largo os charges na caixa de bombons, não sei xavecar, largo um restinho de coca-cola sem gás na garrafa e acabo jogando fora, penso demais pra fazer as coisas, penso de menos pra não fazer as coisas, como pizza na mão, só corto as unhas quando já estão semelhantes às do Zé do Caixão, alimento amores platônicos desde que me entendo por gente, sou muito descuidado com minhas coisas, repito a mesma calça jeans por 3 dias seguidos, quebrar controles remotos é quase uma religião pra mim, faço barulho de madrugada, tenho olhar de psicopata, em alguns momentos careço de humildade e em outros careço de mais confiança no meu taco, pego coisas emprestadas e esqueço de devolver, empresto coisas e esqueço de pedir de volta, não tenho paciência pra fazer social, raramente termino projetos, vivo gripado, tenho tendências à calvície, choro em filmes mamão-com-açúcar, quando quero consigo ser muito desagradável, tenho problemas crônicos para dormir, preciso ter certeza que meus sentimentos são correspondidos senão minha insegurança prevalece e fico sem ação, meu condicionamento físico permite que eu corra no máximo 30 metros sem ficar ofegante, sou baixo, tenho pança de chopp, ninguém entende minhas convicções políticas esquizofrênicas (nem os “ah, o sistema é ótimo” e muito menos os “ah, é tudo culpa do capitalismo”), não sei assobiar, nem andar de patins, nem surfar, nem dançar, minha risada é escandalosa, falo gírias estranhas, faço sarcasmo em cima de coisas sérias, não sou independente e nem tenho previsão de quando serei, tenho hérnia de disco, meu pé é muito grande, minha orelha é muito pequena, sou xereta, bicão, folgado, meu fígado é igual a pele de calcanhar, abro geladeiras sem pedir licença, não faço cerimônia pra me servir quando almoço na casa dos outros, trapaceio no truco, e sou tão desgraçado que ainda vou deixar algumas coisas de fora da lista de propósito.


Mas se alguém aí ainda quiser me conhecer melhor, eu passo a lista das virtudes.

segunda-feira, 10 de setembro de 2007

Medos privados em lugares públicos


Todo mundo é uma ilha. Essa frase já foi usada por diversos poetas, escritores e compositores, com os mais diversos intuitos. Seja pela individualidade ou pela covardia, seja pela reclusão ou pela dissimulação, ela dá sempre a impressão de pairar sobre nossos dias, quase como se fosse uma neve onipresente caindo sem parar em torno de todos os lugares em que sociabilizamos. A dificuldade de se relacionar vai muito além da simples convenção que cada um faz sobre o que é ou o que deixa de ser amor. Muitas vezes nada disso importa quando estamos feridos, ou desiludidos, ou esquecemos coisas que eram essenciais na época em que se apaixonar era simples, que escrevíamos cartas de amor em que escancarávamos nossa falta de experiência amorosa sem nenhuma cerimônia, porque ainda fazia sentido descobrir os caminhos e desvios na alma da pessoa com a qual estávamos juntos.

Não existe nada pior, para a efetivação de um amor espontâneo, real e puro, do que o medo e a carência. O medo que nos abate quando nos sentimos inesperadamente atraídos por alguém nos torna idiotas, passivos. Como expressar? Como atravessar paredes de vidros, verdadeiras grades que nos separam, para exemplificar sentimentos que nem entendemos direito quais são? E o que é mais correto: agir com impulsividade ou com adequação? Entender uma atração passageira é, na maior parte das vezes, tão complexo quanto entender um amor incondicional, porque ambos se confundem na nossa inabilidade de classificar a intensidade das nossas emoções.

A carência é a máscara do desassossego. Ela nos dá o aval para criticarmos tudo nos outros que achamos vil, fútil e superficial, e poucos segundos depois nos enfraquece a ponto de revirarmos esses mesmos anseios dentro de nós, permitindo ao nosso coração dar concessões que nunca admitiríamos nos outros. Nos tornamos a própria contradição, condenando alguém que busca fugacidade da solidão em fitas eróticas, para depois entregamos nossa alma de bandeja a um semi-desconhecido. Falta de atenção é falta de vida. Por um olhar que perdure mais de 3 segundos sobre nós, ás vezes abrimos mão de nossa própria essência. E mentimos nomes e realidades. E nos tornamos mesquinhos e inconseqüentes.

O que fazer? Alguns se sujeitam a uma solidão a dois. A falta de diálogo e a incompreensão mútua são sufocadas em nome da esperança de tempos melhores que não vem. Acabamos em um labirinto doméstico, em que nossas reflexões e emoções se confundem com a procura obsessiva de uma saída para tudo. A saída é inevitável, o término é inevitável, o sangramento é inevitável. Sobra o vazio por tudo o que houve. Sobra a despedida amarga. Sobra a intuição de que não aprendemos nada que nos dê uma resposta de como lidar com a relação seguinte. O que é vida para alguns senão o acúmulo disso ao longo dos anos? Os dias ferem, perdemos entes queridos, os amores de outrora não estão mais presentes, arcamos com obrigações com as quais não estávamos preparados. Duros e desesperançados, nos tornamos testemunhas oculares de amores quebradiços por todos os cantos, como homens bêbados choramingando suas imaturidades sobre o balcão de um bar.

O que resta? Abrir mão? Nunca se abre mão de uma vez por todas da condição mínima da humanidade: o amor. O que fazemos é criar paliativos que sejam uma distorção da percepção que tínhamos, tirando os espinhos mas mantendo o veneno. Essa abnegação pode vir através do álcool, da religião, da reclusão, do falso moralismo, ou da entrega fácil daquilo que de mais valioso tínhamos. E nessas horas tudo é contraste. As cores vivas de um ambiente animado contrapõem nossa melancolia. Um quadro de um olhar fixo na parede maximiza nosso sentimento de culpa. A vontade incessante de provocar desejo reflete o maldizer desse mesmo desejo. E, de repente, aquela neve que pairava em torno dos ambientes parece que toma conta de tudo o que está a nossa volta, invadindo nosso lar, nossas conversas e nossos pensamentos. E quando saímos desse estágio de alucinação, nos encontramos sozinhos, em salas, quartos e banheiros que dão a impressão de ter um milhão de quilômetros quadrados, sufocados por uma tristeza que, no fundo, sabemos que não precisava acontecer.



Um filme tão foda quanto “Medos Privados em Lugares Públicos” não merecia uma crítica, e sim uma crônica.