quinta-feira, 19 de junho de 2008

LETRAS ILETRADAS


Estátuas

Inundo os meus dias
Com o descuido das promessas
Ás vezes prefiro me refugiar
Tento em vão pregar peças
Armo minhas ciladas
Inúteis emboscadas
Com as mãos despreparadas
E o tempo: máquina quebrada

Decoro o meu silêncio
Planejo o meu nascimento
Convoco novas pessoas
Com o grito que não ecoa
Passo a tarde no esquecimento
Na fúria do meu lamento
Beijo o ar, toco o nada
Brinco com a paz envenenada

De repente novos enfeites
Estátuas perfeitas, diversas
De vários tamanhos e razões
Surgem por todos os lados

Coloco-as no melhor canto
À minha vista a todo momento
E me encanta que elas agem
Fazem coisas que já fizeram
Quando não eram apenas pedra
Quando eram ações e companhia
E se diziam eternas
Pro pior medo da minha vida

Sorriem com velhos dentes
Dizem frases estacionadas
Nas férias do meu consciente
Na incerteza de uma piada

E sem aviso minhas estátuas
Se quebram, esfarelam
Nas esperanças mais árduas
Da minha lembrança mais bela
E tudo que me resta
É a construção da minha seta
E a defesa da escuridão:
Estátuas se formam na solidão

quinta-feira, 12 de junho de 2008

Ser.


Eu tinha 8 anos quando, pela primeira vez, me perguntei quem eu era. Até aquele dia eu era Vinícius, pois era por essa palavra que me chamavam ou diziam algo relacionado a mim. Acontece que, na mesma turma que eu, tinha um outro Vinícius. E ele não tinha nada a ver comigo: era japonês, usava óculos, o pai tinha um miúra e ele gostava de matemática. Mesmo assim, o chamavam do mesmo jeito. Pensei que então eu não poderia ser, simplesmente, Vinícius. Tinha que ser mais coisas, ou pelo menos, ir além disso.

Pra entender quem eu era, eu tentei começar na busca por compreender quem as outras pessoas eram. Bom, minha mãe era minha mãe, meu pai era meu pai e minha irmã, minha irmã. Parecia idiotamente óbvio, mas acontece que, ao prestar atenção, vi que pra grande maioria das pessoas minha mãe não era minha mãe. Pra alguns era professora, pra outras, chefe, pra algumas cliente, pra outras tantas, a "Dona Marlei", pra mais algumas, a "Nenem"... Ela era tantas ao mesmo tempo que chegou uma hora que eu me cansei de contar. Voltei o pensamento pra mim e vi que eu também não era só "Vinícius". Ás vezes eu podia ser "aquele menino", "aluno", "meu sobrinho preferido", "o cara mais chato da sala", "o moleque que cata bem no gol".

Também desisti de contar. Percebi o quanto é inútil querer definição do que eu era, porque eu podia ser tantos ao mesmo tempo que não havia nenhuma maneira de somar. Foi quando me dei conta de que, nessa condição, eu poderia ser qualquer coisa que quisesse. Isso me animou tanto, me deixou tão cheio de expectativas, que de fato acreditei, por alguns momentos, ser praticamente um super-herói. Mais que super-herói, afinal eu podia ser super-herói, mas também muitos outros.

Com toda a pose acumulada pelas teorias formuladas, acordei no dia seguinte resolvido a explorar todas essas possibilidades infinitas. Minha pompa era tanta que me esqueci, no meio disso tudo, que se eu podia ser tudo, todo mundo também podia. Só fui me dar conta disso quando cheguei ao colégio e observei, de longe, os outros meninos que se despediam de suas mães para ir pra aula, e depois seguiam em turma acompanhados, cada um se chamando de um apelido completamente diferente de seus nomes originais. Essa infinitude não era particular, e sim uma condição humana. Essa revelação me deixou transtornado, assustado, e confesso que um pouco triste também. Queria tanto ser esse ser único e mágico que pode ser algo hoje e outro alguém completamente diferente 5 segundos depois... Fui pra casa um tanto perdido e descontente.

E então, a última grande descoberta sobre quem eu era me veio dar um murro violento na cara, que eu tive que aguentar firme e assimilar pra toda a minha vida. Meu pai foi ter uma conversa com os anjos, e eu perdi a minha principal referência pra qualquer ponto de interrogação. Eu não percebi na hora, mas com ele, foi-se uma parte do meu mundo. Foi-se um pouco da crença de que as coisas sempre estariam bem, e foi-se, naquele momento, o sentido de entender quem eu era, que deu lugar a perguntas sobre o porquê das coisas acontecerem do jeito que acontecem, se somos predestinados a determinados desvios. Se tudo é uma grande armadilha do destino, ou se, simplesmente, os fatos ocorrem e estamos suscetíveis, a todo instante, a nos encontrar em condições as quais nem imaginaríamos que fossemos deparar.

Os dias correram, semanas até, e de repente a pergunta sobre quem eu era retornou. Naquele momento, sentia necessidade de me entender pra saber como me portar diante de qualquer situação, pro caso do rodamoinho do acaso passar de novo pelo meu caminho, transformando tudo que me rodeava em devaneios inesperados. Mas quando novamente me peguei intrigado com esta questão, imediatamente me lembrei do meu pai, e vi que agora ele não era mais chamado. Não era mais pai, Seu Antônio, doutor, Toninho, e tantas outras identificações que ele tinha, que a vida permitiu que ele tivesse, e que parecia roubar dele após sua partida. Era tão reconhecido pelas palavras, conceitos, discursos, e hoje seus vastos nomes se perdiam na poeira do tempo pra fatalmente sumirem no mais completo esquecimento.

Tive raiva. Chorei. Bati o pé. Teimei que a vida era uma merda, que nada prestava, que não importava ser zilhares de coisas importantes se tudo um dia acabasse daquela maneira injusta. Não podia aceitar que o curso da existência tivesse aquela mecânica que me parecia tão tirana. Decidi que não queria ser mais nada. Queria ser ninguém, um ninguém sem nome, sem função, sem importância. Ao menos, me livrava da decepção de saber que, no fim, todos os "eus" acumulados de nada adiantariam pra que eu tivesse me tornado alguém. Era o que eu achava, e com essa convicção, ignorei todas aquela avalanche de possibilidades de tempos atrás.

Então minha mãe, ao ver que eu não respondia quando ela chamava meu nome, veio ver o que estava acontecendo comigo. Contei tudo isso pra ela. Bom, acho que não dessa maneira que estou contando agora, mas deixei ela saber, de alguma maneira, o que estava acontecendo. Ela me disse que não importava que meu pai não estivesse presente, ele nunca deixaria de ser o que sempre foi em nossas lembranças e recordações, porque essa semente ninguém consegue tirar do coração da gente. Pediu pra que eu não me preocupasse, porque meu pai nunca deixaria de ser meu pai, assim como o Antônio, o grande amor da vida dela, foi, é e sempre será o Antônio. E em todo mundo que teve o privilégio desse convívio, e cuja presença dele foi, de alguma forma, significante, ele permaneceria o que sempre foi. Eternamente.

Eu não sei bem dizer o que senti depois de ouvir tudo aquilo. Fiquei confuso, porém sereno. Aquilo era desesperador e reconfortante ao mesmo tempo. Fluia, simples assim. Meu pai já não era nada, todas aquelas possibilidades tão citadas e impressionáveis se esvaneceram no decorrer da vida, mas continuavam dentro quem teve a chance de receber seu valor. Ao fim disso tudo, depois dessa experiência e de todo o tempo que passou, a minha conclusão é de que não somos nada, e ao mesmo tempo, somos infinitos. Com tantos recursos pra ser o que bem entendermos, terminamos os nossos dias como se fossemos um sonho passageiro, uma lembrança vaga, um lapso. Talvez seja melhor assim, podemos nos livrar da responsabilidade de ser Deus. Hoje, ainda cheio de incertezas, encontro abrigo na convicção de me manter eterno, independente das definições ou do nome subsequente, nos corações e mentes daqueles que verdadeiramente amo e prezo. Por enquanto, esse infinitude tão sagrada e tão cheia de limites me é suficiente.

segunda-feira, 14 de abril de 2008

Penso, logo desisto.


Uma das coisas que mais me cansam são discursos que apelam pra reflexões preguiçosas, genéricas, lugares comuns que acabam pulverizando toda e qualquer análise diferenciada. Sabe aquela coisa do tipo "vou votar em X pra Y não ser eleito", "se eu não entendi o filme, é óbvio que ele não é bom". "big brother é programa tosco e tudo ali é manipulado", "capitalismo e du mau, socialismo é ultra-legal e anarquismo é, uhúúú, animal", "bandido bom é bandido morto", e outras papagaiadas que estacionam no ponto final? Elas estão presentes em toda parte, vão sendo passadas em um telefone-sem-fio infinito como uma mensagem rasa que nunca precisará de revisão, e seguirá seu rumo às bocas variadas, sedentas por serem ouvidas, clamando igualdade geral, mas ao mesmo tempo incoerentemente rezando por algo que as façam serem distintas do resto do rebanho.

Curioso como as pessoas tem necessidade de soarem profundas aos olhos alheios. No fast-food ideológico que virou a vida moderna, não há mais tempo de ponderar, procurar outros ângulos de visão que batam de frente com aquele que, a princípio, se pense ser a verdade absoluta e imaculada. Todo mundo precisa ter opinião própria, mas que não transgrida o embasamento num consenso ou na maioria de votos. Nessa Era em que a privacidade é exterminada, cada dia mais, em nome da falta de identidade e destruição da autenticidade, é conveniente buscar os apontamentos levantados que não vão ferir qualquer interpretação que borrem a imagem (o que não é a tal da responsabilidade social senão isso mesmo?). Todos tem pressa de tudo, todos tem que viver a vida profundamente a cada instante, pois o progresso elevado às ultimas consequências e o consumo desenfreado estão aí pra maquiar qualquer desespero e sentimentos difusos. Parar pra pensar? De jeito nenhum, a vida segue e não podemos perder tempo com bobagens! Não tem uma opinião que é mais rápida e indolor? É essa mesma que eu quero.

Um exemplo pertinente: quantos não propagam por aí, com ar estufato no peito e toda a pose de quem registrou a sabedoria em cartório, que determinada arte é imbecil e que se ele fizesse todo mundo o taxaria de idiota, mas como foi um sujeito renomado que fez, a consagração é obviamente aceita de bom grado? Para esse indivíduo, um olhar rápido, num piscar de olhos, numa fração de tempo, já basta pra colocar determinada estética, linguagem ou estrutura na latrina junto com o xurume e as moscas varejeiras. Afinal, num mundo totalmente interconectado, em que a informação está ao alcance de um clique pra quem tiver disposição de procurá-la, há um dono supremo da verdade em cada esquina. Levar em consideração preceitos de contextualização, de mentalidade vigente de uma época, de esquematização das relações sociais, assimilação de descobertas científicas e mais uma caralhada de apontamentos não valem de absolutamente nada. O tempo urge, e a necessidade de transparecer conhecimento é equivalente, apenas, à de mostrar que está "in", antenado, tudo nos conformes. Passou disso, já é aborrecimento desnecessário.

A impressão gerada por qualquer coisa é indivídual, obviamente. O alicerce dessa mesma impressão só pode ser moldada e/ou repensada pelo próprio indivíduo, e é claro que ninguém é obrigado a gostar ou odiar de tudo o que aparece pela frente. O problema ocorre quando se emite valor de juízo sobre determinada obra ou manifestação, sem ao menos considerar outras formas de avaliar a intenção, o papel dentro de um parâmetro (seja social, temporal ou de qualquer natureza) ou definição daquele mesmo objeto a ser desprezado. Lugar comum mais grave que a pura rejeição sem grandes ponderações, somente o extremo disso, ou seja, atuações fortemente preconceituosas (beirando a fascistas em casos extremos) em meio a um mar de hipocrisia politicamente correta. Julgamentos e preconceitos são condições inatas ao ser humano, mas não o que fazemos delas e como as administramos no modo de viver coletivamente.

O "ter", que até pouco tempo era o que estabelecia quem se julgava maior que o outro, foi substituído pelo "conhecer". A princípio, isso parece positivo, afinal uma sociedade informada tende a ser muito mais preparada para superar seus problemas. O porém é que esse "conhecimento", além de não ter compromisso nenhum com profundidade, continua a tradição anterior das posses, servindo mais como um emblema do que como indagação. Quem tem dados e estatísticas na ponta da língua já está um passo adiante nessa nova forma de divisão de classes provocada pela esfera digital. Infelizmente, isso faz o que há de mais essencial desaparecer, ou seja, o senso crítico. A supremacia dos fatos sobre o pensamento cria essa cisão entre a limitação e a procura novas alternativas e análises. O resultado é uma geração que é informa(tiza)da por diferentes meios (geralmente em colocações simplistas pra não causar grande desconforto), e se acha muito fodona por causa disso, mas não tem um pingo de discernimento pra questionar as verdades "imutáveis" que são regurgitadas em suas bocas, olhos e narizes.

E como tudo chega fácil para esses membros da sociedade, a letargia prevalece sobre a interrogação. Os argumentos minimamente lógicos já são calcados ao posto de leis. E assim é muito simples fincar, pra esse contigente, o que é certo e o que é errado, o que deve ser obedecido e o que deve ser ignorado, a doutrina das escolhas corretas, o comportamento padrão e a ridicularidade de ser diferente. Façamos o dever de casa e ao invés de fazer comédia com leis, vamos é ser o tema da comédia. Complementamos o nosso vazio com a necessidade de termos salvações que surjam dos céus pra nos tirar das trevas, sejam elas políticas, religiosas ou idealizadas, e esquecemos de disciplinar a nossa própria maneira de reter a complexidade do mundo. Porque quem acha que a vida é feita de respostas fáceis, que basta pensar "vou ser feliz" que um anjinho já vai descer de um arco-íris trazendo sorrisos e trufas de chocolate, e que definições jogadas ou pegas de sopetão são capazes de nos trazer respostas pra atingir paz e harmonia conjunta, devia parar de assistir Ursinhos Carinhosos e começar a procurar novas maneiras de absorver o que os dias nos trazem, não só em termos utilitaristas, mas em pontos bem mais amplos. Prefiro pensar que não, mas se felicidade é sinônimo desse triunfo do simulacro, rasura e conformismo, deixo ela para os bobos-da-corte de plantão.

terça-feira, 16 de outubro de 2007

A Tropa é da Elite.



“Na polícia você só tem três escolhas: ou você se corrompe, ou se omite, ou vai pra guerra”. Com essa premissa, Capitão Nascimento justifica sua entrada no BOPE, e por tabela seus métodos de violência, tortura e terror. Tudo movido pela idéia de que o crime só é combatido dessa maneira, e que usuários são grandes responsáveis por tudo isso acontecer, já que financiam os traficantes e dão sentido no fluxo todo. É isso que realmente acontece? As coisas são tão unilaterais a esse ponto? Ao menos no que se diz à avaliação tendenciosa de alguns, é. Soluções reais, nesse esquema, são soluções que não firam a rotatividade do sistema a qual está imbuído. Porque se ferir, ah meu amigo, o bicho pega.

Não é de surpreender que a capa estampada na Veja interprete o filme nesse aspecto. A quem interessa uma sociedade que questione a permanência ou reformulação de suas instituições? Com certeza não a uma publicação tão condizente com a ideologia vigente. O problema é que há pouco espaço para uma leitura um pouco mais aprofundada do filme, ou sedimentada em algo que não seja uma resposta fácil e isenta, e sim uma pergunta que nos mostre diferentes lados do problema. Por que isso? Bom, estamos diante de um dos maiores fenômenos midiáticos dos últimos anos. Não levar isso em consideração na hora de levantar o que o filme apresenta é ignorar o impacto que isso teve. E fica bem claro o que estou dizendo quando se nota a reação do público que tem visto o filme no cinema, entoando frases decoradas do Capitão Nascimento, rindo de seus trejeitos, das suas broncas e tudo o mais. Uma caricatura.

Será que isso aconteceria se assistissem ao filme sem nenhuma informação prévia? A assimilação de qualquer obra sempre sofre influência da pré-disposição que você tem para levá-la a sério ou não. E isso é um empecilho dentro da proposta e da intenção de qualquer autor, pois isola o senso crítico pra transformar tudo em mero entretenimento vago. Sucesso não significa necessariamente comprometimento com as idéias, e José Padilha, diretor do filme, sabe disso. Sabe que a popularização de seu filme promova debates, mas a reflexão imediata de espectador está comprometida, e ela sim é a mais forte, espontânea e relevante. Devíamos ir muito além de debatermos sobre Tropa de Elite, devíamos debater se vimos a obra como ela deveria ser vista, ou mesmo se existe uma forma correta de vê-la.

Tudo fica mais complexo ainda se pensarmos na estética do filme, muito próxima à documental. Opção feita para dar mais veracidade, aproximar de forma contudente realidade e ficção. Não há facilidades, a imagem é a janela pela qual nos damos conta de que tudo acontece, as mortes, chacinas, torturas, descaso da classe média, paliativos de pessoas “engajadas”, mas a realidade dói. Dói ainda mais porque parece um caminho sem volta, uma coisa inevitável. Quando um filme desses surge, a última coisa que devíamos fazer é cair na conta do panfletarismo. Taxá-lo de “fascismo”, “direitismo”, “apologia à violência”, etc, é limitar as suas possibilidades. Sob lentes vermelhas, é claro que enxergamos tudo vermelho.

Proselitismo, glamourização da violência, tudo isso existe, insiste, são assimilados e contemplados, assim como a concordância em rotular Tropa de Elite como “correto ao mostrar os verdadeiros responsáveis pela violência e tráfico”. Mas existem outros tantos aspectos consideráveis que ás vezes parecem estar além da nossa consciência por não serem definitivos. Pude observar, á par desses apontamentos obtusos, um pedido de reflexão sobre a discriminalização das drogas no filme, coisa que foi pouquíssimo comentada. Também uma verdadeira alegação da falência das instituições policiais, mas não, a culpa é do playboy e PM tem que cair matando mesmo. Cultura do ódio, “é eu ou ele”. Enquanto isso morre gente na classe E, D, C, B e A. E o rebanho ri e se isenta com aquela velha brincadeira infame: tem culpa eu?




segunda-feira, 24 de setembro de 2007

CONTOS TONTOS


Estimação

Ela não sabia pra qual animalzinho queria dar seu carinho. Tinha o mesmo apego aos bichos que os pais, defensores incansáveis dos direitos dos animais, mas ainda não elegera aquele que a contagiaria nas manhãs, aquele com a qual ela dedicaria horas de seu tempo livre para brincadeiras desnorteantes e felicidade compartilhada gota por gota de suor. Já tentou cachorro, gato, papagaio, hamster, marreco, sapo e até uma lagartixa, e nada. Era bom, era legal, mas não era algo mais. Não era, por assim dizer, afeto de quem se espelha.

Os pais diziam “Não se preocupe, é melhor amar os animais em geral que amar a um só e ignorar os outros, e você tem tanto amor dentro desse seu coraçãozinho que pode distribuir pra todos os bichos do mundo”. Aos cinco anos, isso é reconfortante por cinco minutos. Pelas ocupações da causa ambiental dos pais, a menina muitas vezes ficava sozinha em casa, ela e uma boneca, ela e um pente, ela e a sua sombra.

Um amigo era necessário, um que fosse como nenhum outro que ela nunca tivera. Até que um dia ela estava sentada num canto da sala, pintando qualquer coisa com seu lápis de qualquer cor, e uma barata pousou em seu desenho. A menina olhou. A barata parou. A menina a cutucou levemente com o lápis e a barata deu uma coçada em suas antenas e alguns passos pra trás. Então, a menina começou a fazer um traço em frente à barata, que seguia obediente cada reta, cada curva, cada mudança de direção.

Em cinco anos, nunca riu tanto. Fez então um traço descontínuo pra ver o que acontecia. E o inseto resolveu ir embora, na procura incessante de um ralo para se esconder. A menina observou muito atentamente o gesto desesperado do inseto e foi atrás, criando com a mão uma barreira para a passagem da barata, que parou, subiu em sua mão e ali ficou. A menina trouxe o bichinho para perto do seu rosto, observado cada movimento de suas patinhas e antenas. Esboçou um “oi”, e acreditou ter sido respondida, pois a barata moveu suas antenas de uma forma diferente. Perguntou se ela queria ser sua amiga, e ela começou a andar pelo seu braço, chegando próximo ao cotovelo, já de ponta-cabeça conforme se aproximava dos ombros, e depois voltou.

Um contentamento tomou conta da garotinha solitária. Havia finalmente encontrado um animalzinho que fazia jus aos seus cuidados e devoção. Tinha certeza que aquele bichinho estranho seria a melhor companhia para as manhãs silenciosas, tardes longas e noites misteriosas. Tudo a partir dali ganharia novas cores, sons, sentidos. Teria e daria atenção. Teria amor sincero. Teria vida.

Ela deixou a baratinha num canto da sala junto com o papel de seus rabiscos e foi correndo para seu quarto encontrar algo com a qual poderia fazer uma casinha. Revirou caixas, fundos de armários e espalhou revistinhas por todo o quarto. Encontrou uma velha caixinha onde guardava os sapatinhos de suas bonecas preferidas. Jogou-as todas numa gaveta qualquer e correu toda animada para a sala reencontrar aquela que dali por diante seria sua amiga mais confidente e verdadeira.

No caminho, ouviu um grito apavorante, Reconheceu a voz de sua mãe, mas nunca tinha ouvido um grito assim antes, tanto que ficou amedrontada e diminuiu os passos de sua corrida. A seguir, ouviu alguns barulhos como se fossem palmadas. Nunca tinha levado uma palmada, mas sabia o som, pois quando fazia alguma desordem seu pai dava uma palmada com o chinelo na quina do sofá em tom de ameaça, e ela entendia o que isso significava e não repetia o erro. De repente, os sons cessaram, e ela apressou-se novamente. Entrou na sala, mas não viu a nova amiguinha lá. Nisso seu pai passou por ela com uma pá de lixo na mão, e a menina seguiu. E foi então que, no fim do percurso, ela viu a barata parada no chão, imóvel, de ponta-cabeça com as antenas quebradas. E seu pai a recolhendo com a pá de lixo e saindo de casa para jogar na lixeira da calçada.

E então, ela chorou. Um choro sentido, como nunca antes havia chorado. Não entendia porque seus pais haviam matado o animalzinho que havia escolhido para amar. Não entendia como um amor a uma determinada “coisa” podia ter exceções. Não entendia que o que havia despertado nela de repente não podia mais ser demonstrado a quem a transformou dessa maneira.

Ela não tinha ainda pura consciência disso, mas naquele dia em que se dispôs a compartilhar tudo que tinha de melhor dentro dela com a baratinha que pousou em seu desenho, a garotinha teve suas primeiras grande lições sobre a vida: Que a humanidade é cheia de entrelinhas, exceções, contudos e entretantos. Que o amor é transformador, pois nos faz entrar em contato com partes de nós que, até então, pareciam adormecidas, mas que esse sentimento maravilhoso muitas vezes é incompreendido, ou subestimado, e é infinito enquanto dura. E que definições de igualdade existem para que uns sejam mais iguais que os outros.

quinta-feira, 20 de setembro de 2007

LETRAS ILETRADAS


Íris

O mundo parece tão frio
E deserto

Nem as melhores metas estão livres de seus pecados
E de suas precauções

E uma pessoa nova surge a cada minuto
Com a receita da perfeição
Com a essência idolatrada

Cada passo dissimula uma incerteza
Que ninguém consegue assumir
Todos se calam
E se calando, não percebem
Que gritam por dentro com a mesma voz
Uma única e bela palavra

Mas não, o sacrifício é sábio
Os corações estão camuflados
E não conseguem mais olhar para os lados

Os desejos silenciam
Não descobriram nenhuma dignidade livre
Os sentidos se isolam
E cada um se torna sua própria prisão

terça-feira, 18 de setembro de 2007

Perfeição é coisa de boneca de porcelana.


Sou preguiçoso, desatento, bagunceiro, chato, me perco em estacionamentos, jogo bola que nem um velho de 88 anos, tenho 3 obturações, sou infantil, imaturo, desengonçado, hipocondríaco, sempre sonolento, não como na mesa, sou bicho do mato, odeio telefones, amo filmes esquisitos, me visto como quem se joga no armário e seja o que Deus quiser, adepto da solidão e das guloseimas sem hora, viciado em “internerd”, ronco, em termos culinários não sei nem esquentar água direito, quando desmotivado minha atitude se equivale a de uma bauxita, muitas vezes sem iniciativa por... ahn... timidez, tenho o gosto musical de alguém 30 anos mais velho, meus amigos reclamam que eu sumo toda hora, minha mãe reclama que eu não arrumo o quarto, minha irmã reclama que eu não dou atenção quando ela liga, e minha experiência e conhecimentos no campo dos relacionamentos amorosos são quase tão evoluídos quanto os de um bebê de 7 meses, sou manipulador, já ralei o carro tantas vezes que minha mãe tá com vergonha de ir numa revendedora ver quanto ele vale (isso mesmo, o carro não é meu), reclamo de ter que lavar 1 mísero copo, sempre largo os charges na caixa de bombons, não sei xavecar, largo um restinho de coca-cola sem gás na garrafa e acabo jogando fora, penso demais pra fazer as coisas, penso de menos pra não fazer as coisas, como pizza na mão, só corto as unhas quando já estão semelhantes às do Zé do Caixão, alimento amores platônicos desde que me entendo por gente, sou muito descuidado com minhas coisas, repito a mesma calça jeans por 3 dias seguidos, quebrar controles remotos é quase uma religião pra mim, faço barulho de madrugada, tenho olhar de psicopata, em alguns momentos careço de humildade e em outros careço de mais confiança no meu taco, pego coisas emprestadas e esqueço de devolver, empresto coisas e esqueço de pedir de volta, não tenho paciência pra fazer social, raramente termino projetos, vivo gripado, tenho tendências à calvície, choro em filmes mamão-com-açúcar, quando quero consigo ser muito desagradável, tenho problemas crônicos para dormir, preciso ter certeza que meus sentimentos são correspondidos senão minha insegurança prevalece e fico sem ação, meu condicionamento físico permite que eu corra no máximo 30 metros sem ficar ofegante, sou baixo, tenho pança de chopp, ninguém entende minhas convicções políticas esquizofrênicas (nem os “ah, o sistema é ótimo” e muito menos os “ah, é tudo culpa do capitalismo”), não sei assobiar, nem andar de patins, nem surfar, nem dançar, minha risada é escandalosa, falo gírias estranhas, faço sarcasmo em cima de coisas sérias, não sou independente e nem tenho previsão de quando serei, tenho hérnia de disco, meu pé é muito grande, minha orelha é muito pequena, sou xereta, bicão, folgado, meu fígado é igual a pele de calcanhar, abro geladeiras sem pedir licença, não faço cerimônia pra me servir quando almoço na casa dos outros, trapaceio no truco, e sou tão desgraçado que ainda vou deixar algumas coisas de fora da lista de propósito.


Mas se alguém aí ainda quiser me conhecer melhor, eu passo a lista das virtudes.