quinta-feira, 19 de junho de 2008

LETRAS ILETRADAS


Estátuas

Inundo os meus dias
Com o descuido das promessas
Ás vezes prefiro me refugiar
Tento em vão pregar peças
Armo minhas ciladas
Inúteis emboscadas
Com as mãos despreparadas
E o tempo: máquina quebrada

Decoro o meu silêncio
Planejo o meu nascimento
Convoco novas pessoas
Com o grito que não ecoa
Passo a tarde no esquecimento
Na fúria do meu lamento
Beijo o ar, toco o nada
Brinco com a paz envenenada

De repente novos enfeites
Estátuas perfeitas, diversas
De vários tamanhos e razões
Surgem por todos os lados

Coloco-as no melhor canto
À minha vista a todo momento
E me encanta que elas agem
Fazem coisas que já fizeram
Quando não eram apenas pedra
Quando eram ações e companhia
E se diziam eternas
Pro pior medo da minha vida

Sorriem com velhos dentes
Dizem frases estacionadas
Nas férias do meu consciente
Na incerteza de uma piada

E sem aviso minhas estátuas
Se quebram, esfarelam
Nas esperanças mais árduas
Da minha lembrança mais bela
E tudo que me resta
É a construção da minha seta
E a defesa da escuridão:
Estátuas se formam na solidão

quinta-feira, 12 de junho de 2008

Ser.


Eu tinha 8 anos quando, pela primeira vez, me perguntei quem eu era. Até aquele dia eu era Vinícius, pois era por essa palavra que me chamavam ou diziam algo relacionado a mim. Acontece que, na mesma turma que eu, tinha um outro Vinícius. E ele não tinha nada a ver comigo: era japonês, usava óculos, o pai tinha um miúra e ele gostava de matemática. Mesmo assim, o chamavam do mesmo jeito. Pensei que então eu não poderia ser, simplesmente, Vinícius. Tinha que ser mais coisas, ou pelo menos, ir além disso.

Pra entender quem eu era, eu tentei começar na busca por compreender quem as outras pessoas eram. Bom, minha mãe era minha mãe, meu pai era meu pai e minha irmã, minha irmã. Parecia idiotamente óbvio, mas acontece que, ao prestar atenção, vi que pra grande maioria das pessoas minha mãe não era minha mãe. Pra alguns era professora, pra outras, chefe, pra algumas cliente, pra outras tantas, a "Dona Marlei", pra mais algumas, a "Nenem"... Ela era tantas ao mesmo tempo que chegou uma hora que eu me cansei de contar. Voltei o pensamento pra mim e vi que eu também não era só "Vinícius". Ás vezes eu podia ser "aquele menino", "aluno", "meu sobrinho preferido", "o cara mais chato da sala", "o moleque que cata bem no gol".

Também desisti de contar. Percebi o quanto é inútil querer definição do que eu era, porque eu podia ser tantos ao mesmo tempo que não havia nenhuma maneira de somar. Foi quando me dei conta de que, nessa condição, eu poderia ser qualquer coisa que quisesse. Isso me animou tanto, me deixou tão cheio de expectativas, que de fato acreditei, por alguns momentos, ser praticamente um super-herói. Mais que super-herói, afinal eu podia ser super-herói, mas também muitos outros.

Com toda a pose acumulada pelas teorias formuladas, acordei no dia seguinte resolvido a explorar todas essas possibilidades infinitas. Minha pompa era tanta que me esqueci, no meio disso tudo, que se eu podia ser tudo, todo mundo também podia. Só fui me dar conta disso quando cheguei ao colégio e observei, de longe, os outros meninos que se despediam de suas mães para ir pra aula, e depois seguiam em turma acompanhados, cada um se chamando de um apelido completamente diferente de seus nomes originais. Essa infinitude não era particular, e sim uma condição humana. Essa revelação me deixou transtornado, assustado, e confesso que um pouco triste também. Queria tanto ser esse ser único e mágico que pode ser algo hoje e outro alguém completamente diferente 5 segundos depois... Fui pra casa um tanto perdido e descontente.

E então, a última grande descoberta sobre quem eu era me veio dar um murro violento na cara, que eu tive que aguentar firme e assimilar pra toda a minha vida. Meu pai foi ter uma conversa com os anjos, e eu perdi a minha principal referência pra qualquer ponto de interrogação. Eu não percebi na hora, mas com ele, foi-se uma parte do meu mundo. Foi-se um pouco da crença de que as coisas sempre estariam bem, e foi-se, naquele momento, o sentido de entender quem eu era, que deu lugar a perguntas sobre o porquê das coisas acontecerem do jeito que acontecem, se somos predestinados a determinados desvios. Se tudo é uma grande armadilha do destino, ou se, simplesmente, os fatos ocorrem e estamos suscetíveis, a todo instante, a nos encontrar em condições as quais nem imaginaríamos que fossemos deparar.

Os dias correram, semanas até, e de repente a pergunta sobre quem eu era retornou. Naquele momento, sentia necessidade de me entender pra saber como me portar diante de qualquer situação, pro caso do rodamoinho do acaso passar de novo pelo meu caminho, transformando tudo que me rodeava em devaneios inesperados. Mas quando novamente me peguei intrigado com esta questão, imediatamente me lembrei do meu pai, e vi que agora ele não era mais chamado. Não era mais pai, Seu Antônio, doutor, Toninho, e tantas outras identificações que ele tinha, que a vida permitiu que ele tivesse, e que parecia roubar dele após sua partida. Era tão reconhecido pelas palavras, conceitos, discursos, e hoje seus vastos nomes se perdiam na poeira do tempo pra fatalmente sumirem no mais completo esquecimento.

Tive raiva. Chorei. Bati o pé. Teimei que a vida era uma merda, que nada prestava, que não importava ser zilhares de coisas importantes se tudo um dia acabasse daquela maneira injusta. Não podia aceitar que o curso da existência tivesse aquela mecânica que me parecia tão tirana. Decidi que não queria ser mais nada. Queria ser ninguém, um ninguém sem nome, sem função, sem importância. Ao menos, me livrava da decepção de saber que, no fim, todos os "eus" acumulados de nada adiantariam pra que eu tivesse me tornado alguém. Era o que eu achava, e com essa convicção, ignorei todas aquela avalanche de possibilidades de tempos atrás.

Então minha mãe, ao ver que eu não respondia quando ela chamava meu nome, veio ver o que estava acontecendo comigo. Contei tudo isso pra ela. Bom, acho que não dessa maneira que estou contando agora, mas deixei ela saber, de alguma maneira, o que estava acontecendo. Ela me disse que não importava que meu pai não estivesse presente, ele nunca deixaria de ser o que sempre foi em nossas lembranças e recordações, porque essa semente ninguém consegue tirar do coração da gente. Pediu pra que eu não me preocupasse, porque meu pai nunca deixaria de ser meu pai, assim como o Antônio, o grande amor da vida dela, foi, é e sempre será o Antônio. E em todo mundo que teve o privilégio desse convívio, e cuja presença dele foi, de alguma forma, significante, ele permaneceria o que sempre foi. Eternamente.

Eu não sei bem dizer o que senti depois de ouvir tudo aquilo. Fiquei confuso, porém sereno. Aquilo era desesperador e reconfortante ao mesmo tempo. Fluia, simples assim. Meu pai já não era nada, todas aquelas possibilidades tão citadas e impressionáveis se esvaneceram no decorrer da vida, mas continuavam dentro quem teve a chance de receber seu valor. Ao fim disso tudo, depois dessa experiência e de todo o tempo que passou, a minha conclusão é de que não somos nada, e ao mesmo tempo, somos infinitos. Com tantos recursos pra ser o que bem entendermos, terminamos os nossos dias como se fossemos um sonho passageiro, uma lembrança vaga, um lapso. Talvez seja melhor assim, podemos nos livrar da responsabilidade de ser Deus. Hoje, ainda cheio de incertezas, encontro abrigo na convicção de me manter eterno, independente das definições ou do nome subsequente, nos corações e mentes daqueles que verdadeiramente amo e prezo. Por enquanto, esse infinitude tão sagrada e tão cheia de limites me é suficiente.

segunda-feira, 14 de abril de 2008

Penso, logo desisto.


Uma das coisas que mais me cansam são discursos que apelam pra reflexões preguiçosas, genéricas, lugares comuns que acabam pulverizando toda e qualquer análise diferenciada. Sabe aquela coisa do tipo "vou votar em X pra Y não ser eleito", "se eu não entendi o filme, é óbvio que ele não é bom". "big brother é programa tosco e tudo ali é manipulado", "capitalismo e du mau, socialismo é ultra-legal e anarquismo é, uhúúú, animal", "bandido bom é bandido morto", e outras papagaiadas que estacionam no ponto final? Elas estão presentes em toda parte, vão sendo passadas em um telefone-sem-fio infinito como uma mensagem rasa que nunca precisará de revisão, e seguirá seu rumo às bocas variadas, sedentas por serem ouvidas, clamando igualdade geral, mas ao mesmo tempo incoerentemente rezando por algo que as façam serem distintas do resto do rebanho.

Curioso como as pessoas tem necessidade de soarem profundas aos olhos alheios. No fast-food ideológico que virou a vida moderna, não há mais tempo de ponderar, procurar outros ângulos de visão que batam de frente com aquele que, a princípio, se pense ser a verdade absoluta e imaculada. Todo mundo precisa ter opinião própria, mas que não transgrida o embasamento num consenso ou na maioria de votos. Nessa Era em que a privacidade é exterminada, cada dia mais, em nome da falta de identidade e destruição da autenticidade, é conveniente buscar os apontamentos levantados que não vão ferir qualquer interpretação que borrem a imagem (o que não é a tal da responsabilidade social senão isso mesmo?). Todos tem pressa de tudo, todos tem que viver a vida profundamente a cada instante, pois o progresso elevado às ultimas consequências e o consumo desenfreado estão aí pra maquiar qualquer desespero e sentimentos difusos. Parar pra pensar? De jeito nenhum, a vida segue e não podemos perder tempo com bobagens! Não tem uma opinião que é mais rápida e indolor? É essa mesma que eu quero.

Um exemplo pertinente: quantos não propagam por aí, com ar estufato no peito e toda a pose de quem registrou a sabedoria em cartório, que determinada arte é imbecil e que se ele fizesse todo mundo o taxaria de idiota, mas como foi um sujeito renomado que fez, a consagração é obviamente aceita de bom grado? Para esse indivíduo, um olhar rápido, num piscar de olhos, numa fração de tempo, já basta pra colocar determinada estética, linguagem ou estrutura na latrina junto com o xurume e as moscas varejeiras. Afinal, num mundo totalmente interconectado, em que a informação está ao alcance de um clique pra quem tiver disposição de procurá-la, há um dono supremo da verdade em cada esquina. Levar em consideração preceitos de contextualização, de mentalidade vigente de uma época, de esquematização das relações sociais, assimilação de descobertas científicas e mais uma caralhada de apontamentos não valem de absolutamente nada. O tempo urge, e a necessidade de transparecer conhecimento é equivalente, apenas, à de mostrar que está "in", antenado, tudo nos conformes. Passou disso, já é aborrecimento desnecessário.

A impressão gerada por qualquer coisa é indivídual, obviamente. O alicerce dessa mesma impressão só pode ser moldada e/ou repensada pelo próprio indivíduo, e é claro que ninguém é obrigado a gostar ou odiar de tudo o que aparece pela frente. O problema ocorre quando se emite valor de juízo sobre determinada obra ou manifestação, sem ao menos considerar outras formas de avaliar a intenção, o papel dentro de um parâmetro (seja social, temporal ou de qualquer natureza) ou definição daquele mesmo objeto a ser desprezado. Lugar comum mais grave que a pura rejeição sem grandes ponderações, somente o extremo disso, ou seja, atuações fortemente preconceituosas (beirando a fascistas em casos extremos) em meio a um mar de hipocrisia politicamente correta. Julgamentos e preconceitos são condições inatas ao ser humano, mas não o que fazemos delas e como as administramos no modo de viver coletivamente.

O "ter", que até pouco tempo era o que estabelecia quem se julgava maior que o outro, foi substituído pelo "conhecer". A princípio, isso parece positivo, afinal uma sociedade informada tende a ser muito mais preparada para superar seus problemas. O porém é que esse "conhecimento", além de não ter compromisso nenhum com profundidade, continua a tradição anterior das posses, servindo mais como um emblema do que como indagação. Quem tem dados e estatísticas na ponta da língua já está um passo adiante nessa nova forma de divisão de classes provocada pela esfera digital. Infelizmente, isso faz o que há de mais essencial desaparecer, ou seja, o senso crítico. A supremacia dos fatos sobre o pensamento cria essa cisão entre a limitação e a procura novas alternativas e análises. O resultado é uma geração que é informa(tiza)da por diferentes meios (geralmente em colocações simplistas pra não causar grande desconforto), e se acha muito fodona por causa disso, mas não tem um pingo de discernimento pra questionar as verdades "imutáveis" que são regurgitadas em suas bocas, olhos e narizes.

E como tudo chega fácil para esses membros da sociedade, a letargia prevalece sobre a interrogação. Os argumentos minimamente lógicos já são calcados ao posto de leis. E assim é muito simples fincar, pra esse contigente, o que é certo e o que é errado, o que deve ser obedecido e o que deve ser ignorado, a doutrina das escolhas corretas, o comportamento padrão e a ridicularidade de ser diferente. Façamos o dever de casa e ao invés de fazer comédia com leis, vamos é ser o tema da comédia. Complementamos o nosso vazio com a necessidade de termos salvações que surjam dos céus pra nos tirar das trevas, sejam elas políticas, religiosas ou idealizadas, e esquecemos de disciplinar a nossa própria maneira de reter a complexidade do mundo. Porque quem acha que a vida é feita de respostas fáceis, que basta pensar "vou ser feliz" que um anjinho já vai descer de um arco-íris trazendo sorrisos e trufas de chocolate, e que definições jogadas ou pegas de sopetão são capazes de nos trazer respostas pra atingir paz e harmonia conjunta, devia parar de assistir Ursinhos Carinhosos e começar a procurar novas maneiras de absorver o que os dias nos trazem, não só em termos utilitaristas, mas em pontos bem mais amplos. Prefiro pensar que não, mas se felicidade é sinônimo desse triunfo do simulacro, rasura e conformismo, deixo ela para os bobos-da-corte de plantão.